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O novo normal é o anormal, por Marina Pechlivanis

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Qualquer hábito torna a nossa mão mais engenhosa e o nosso gênio mais desajeitado, segundo Friedrich Nietzsche. Para Erasmo, não há nada de tão absurdo que o hábito não torne aceitável. Para Ovídio, nada é mais forte do que o hábito. Mark Twain defende que não se larga um hábito arremessando-o pela janela; é preciso fazê-lo descer a escada degrau a degrau. Já Georges Courteline defende que é mais fácil trocar de religião que de marca de café.

Entender o processo de valoração que se efetiva nas trocas é compreender os hábitos aos quais as pessoas são condicionadas em sociedade, determinantes de muitas de suas condutas.

Segundo o estudo Habits — A repeat Performance, 45% de nossos comportamentos diários são hábitos e não decisões de livre arbítrio – desde que efetivadas nos mesmos contextos: ver as novidades nas redes sociais, fazer exercícios, se alimentar. São rotinas neurológicas que nos permitem executar tarefas de forma repetitiva, sem precisar pensar. “Hábitos nos mantêm fazendo o que sempre fizemos, apesar de nossas boas intenções de fazer de outra forma”, dizem os autores.

O Valor dos Hábitos – Segundo Charles Duhigg , hábitos “podem ser ignorados, modificados e substituídos”; porém, uma vez que o sulco é registrado e o hábito é implementado, o cérebro reduz sua participação no processo de decisão e, a não ser que a pessoa brigue com o hábito, encontrando novos desafios e novas recompensas, o padrão antigo registrado será seguido automaticamente.

Os comportamentos ficam registrados em nossa memória em uma espécie de circuito: certa situação gera um gatilho, que ativa as rotinas gravadas nos gânglios basais e que estimula a produção de dopamina, a molécula do prazer, que traz uma sensação de conforto, de ter feito a coisa certa, de felicidade. Quanto mais a situação se repete, mais sulcada fica a memória e menos temos que pensar, economizando energia.

No mundo das trocas, esse hábito pode se transformar em fidelização. Uma determinada transação se transforma em rotina porque resulta em uma recompensa, gerando prazer e a vontade de repetir a sensação que a transação proporciona. Essa métrica serve tanto para a troca de dons quanto de mercadorias — situações familiares e reconfortantes que despertam os mesmos comportamentos das pessoas, em especial quando consideradas consumidores, fazendo parte automática de seus rituais diários.

Hélio Schwartsman pondera que “hábitos não estão limitados a pessoas. Eles também estão presentes na vida de empresas e organizações. Pior ainda, empresas e organizações tentam explorar o hábito das pessoas, mais especificamente de consumidores, para aumentar seu faturamento; moral da história, que dá razão aos paranoicos: é que é preciso ter cuidado ao passar o cartão de fidelidade no caixa. Sua loja favorita pode estar descobrindo seus segredos mais íntimos.

O consumidor não acredita nisso, o publicitário sabe que o consumidor não acredita e o consumidor, em retorno, sabe que o publicitário sabe que ele não acredita. O que liga um ao outro com a força de um ímã imperioso não é a credibilidade, crédito ou confiança; o que os une é uma cumplicidade da ordem da fantasia. A publicidade dá a forma visível, ainda que absurda, às fantasias que tiranizam o consumo. Por isso, para que possa cumprir essa função, a publicidade precisa deste espaço ritual, o espaço em que está autorizada a delirar à vontade. Em outras sociedades, esse espaço costuma ocorrer nos ritos religiosos. Na nossa, o mesmo espaço está na publicidade.
– Eugênio Bucci

A Eterna Novidade – Análises persecutórias à parte, é preciso considerar a realidade midiática em que vivemos, que modifica temporalidades e reestrutura hábitos com velocidade nunca vista, estimulando permanentemente novas trocas e experimentações: o mercado lança novidades incessantemente, que circulam instantaneamente na mídia convencional e nas novas mídias, que mobilizam os consumidores; que desejam imediatamente a ideia da posse de determinado produto ou serviço; que os adquirem virtualmente e divulgam suas aquisições; que deixam de ter sentido com outras novidades que se tornam o desejo do momento; e tudo se repete num moto-contínuo mercantilista e automático, que movimenta negócios globais e bilionários, para bilhões de pessoas que se acostumaram a viver dessa forma. É o império do mais e mais, cada vez mais rápido, gerando mais e mais desperdício também cada vez mais rápido.

Apareceu — pode ser um produto, um ritual ou um bordão —, as pessoas querem: vira meme, vira moda, quiçá hábito também. Essa métrica vale em qualquer lugar do mundo, gerando manias e modismos que movimentam o mercado dos novos possíveis hábitos, esperando quem os adote. Exatamente aí é que nasce o normal. Todo um aparato de objetos, experiências e sensações que constroem um repertório do que se deve ter, saber, visitar, consumir, comer, usar, conhecer… para poder ser o que o mercado espera que você seja: um consumidor.

Ao fim da cota inteira de publicidade absorvida diariamente pelo indivíduo, e ainda mais, da anual, esse puro receptor se encontrará vinculado por uma série infinita de produtos em contraposição ou em justaposição entre si, imersos na sua mente, sem que o seu “corpo” tenha a possibilidade de satisfazer-se, não certamente, com a totalidade, mas nem mesmo com a possibilidade de investimento visual. E então geram-se a ansiedade e o rancor nessa tesoura que vincula e, ao mesmo tempo, não resolve a ligação.
– Massimo Canevacci, Antropologia da comunicação visual

Nos limites do normal – Atenção: o que nos diz que as coisas estão normais, que as coisas são normais? As imagens, os vídeos, os tutoriais, as redes sociais, a mídia e seus espelhamentos no cotidiano, em nós e nos outros. A percepção humana não é uma consequência direta da realidade, e sim um ato imaginativo, teoriza o físico Michael Faraday. E temos a tendência de interpretar as coisas de modo a favorecer as nossas ideias, completa Ellen Langer (pioneira na psicologia do controle e professora de Harvard): o que acreditamos é o que passa a vale como certo, como algo dentro das normas — que seja a nossa versão de como as normas deveriam ser.

Ziv Carmon (professor de marketing da Insead) e Daniel Kahneman (um dos ícones da economia comportamental) demonstram que a memória é muito influenciada pelos últimos minutos de uma experiência: se a finalização for boa, o registro tende a ficar positivo. Assim, o último post de alguém que você segue pode ganhar tônus de algo atual, trivial, normal — mesmo que seja algo bizarro, descabido, inapropriado.

É complexo compreender como as pessoas veem as coisas para tentar antecipar suas ações, pois o comportamento humano é imprevisível e irracional — porém movido a expectativas. No sistema consumista exagerado, a expectativa era consumir mais e mais. Quem sabe com a passagem da pandemia de COVID-19 pela humanidade ressurjam outros sistemas de troca, mais humanos e humanitários, mais úteis e menos fúteis, para que novas motivações sejam apresentadas às pessoas, de forma que criem boas novas experiências e que, uma vez absorvidas, sejam repetidas e desejadas. Quem sabe o que era anormal, como as atitudes envolvendo gentileza, solidariedade, respeito, amizade, hospitalidade, civilidade, altruísmo… possam fazer parte das novas modas, tendências. E hábitos. O novo normal passa ser o anormal. E que este anormal se normalize o quanto antes.

As cadeias do hábito são, em geral, pouco sólidas para serem sentidas, até que se tornem fortes demais para serem partidas.
– Samuel Johnson

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