“Lado B” entrega a idade, eu sei, mas a ideia foi essa, chamar a atenção de quem cresceu acumulando com carinho discos de vinil e fitas cassete, tesouros frágeis que tinham dois lados de meia hora, lembrança agridoce para quem, como eu, deve ter hoje uma pilha de álbuns e caixinhas embolorando em algum armário enquanto nos resignamos ao mundo sofrível do streaming ouvindo em fones sofríveis versões sofríveis de músicas sofríveis que o tal do algoz, digo, algoritmo nos empurra orelha adentro. Pois é, progresso nem sempre quer dizer melhoria, e hoje valem mais 8G de mp3 num pen drive do que um vinil mofando, e pode não parecer mas essa digressão acústico-musical é na verdade uma boa maneira de falarmos do futuro… daqueles que já têm um bom passado.
Eu tenho uma tese absolutamente infundada mas que dá um bom papo no bar: fomos feitos para durar quarenta anos. Passou disso, tudo complica. OK, a tese não é nenhuma revolução, afinal os sinais são muitos, dos cabelos brancos aos ausentes, daquilo que enrijece ao que muito pelo contrário, mas para tudo isso há tinturas, apliques e milagres de vinte minutos, nada que o dinheiro não pague, mas não é do corpinho que estou falando. O problema aqui é algo que o espelho não denuncia, algo que não incomoda, algo que curiosamente aumenta com o tempo: a sua autoestima, a sua autoconfiança, o autoengano.
Uma boa dose de autoengano é salutar, veja bem. Sem autoengano, sem otimismo, sem esperança em milagres ninguém sai da cama. Autoengano foi um presente maravilhoso da evolução, praticamente um prozac natural gratuito, e graças a isso cá estamos nós no ápice da evolução da espécie… vivendo duas vezes mais do que quarenta anos, e aí começa o problema.
Você teve uma infância incrível brincando sem riscos, você teve uma adolescência fantástica se arriscando muito experimentando de tudo e, dos vinte aos trinta, você foi peneirando o que valia a pena e deixando a experimentação de lado. Aos quarenta você olha no espelho e sabe muito bem quem você é, o você que gosta e o que não gosta, o que sabe e o que nem quer saber e sorri satisfeito. Seguindo o reloginho biológico dessa minha tese capenga, nessa altura o teu cérebro se dá por contente, fecha as portas, pendura a chuteira, engata a banguela e entra em piloto automático esperando a aposentadoria. Missão cumprida… #sóquenão, porque a missão agora é cOmprida, muito comprida, você não está nem na metade.
Resultado: teu cérebro para no tempo e o bandido do tempo não só não para nunca e nunca dura muito tempo enquanto você continua achando que está por cima da onda e que o que você aprendeu em quarenta anos continua valendo apesar da data de validade obviamente vencida. Música boa, por exemplo, era aquela que você ouvia aos vinte, e você vai repetir isso até os oitenta.
Um dia, porém, a casa cai, claro, mas nem sempre a ficha cai, e é triste ver tanta gente com histórias tão ricas continuar achando que a sua história vale a mesma coisa para sempre. É duro descer do trono, é duro descer do salto alto, é duro voltar à estaca zero, é duro perder a coroa e abdicar da majestade quando nossa natureza humana não foi preparada pra uma segunda rodada. É duro ver gente sênior insistindo em ser o que não funciona mais, em buscar o que não existe mais, em ser feliz de um jeito que não tem mais jeito.
Pois bem: duramos muito e não fomos feitos pra isso, ponto. Claro que gurus entusiásticos vão dizer que é só se reinventar, claro que os tecno-otimistas vão nos tranquilizar dizendo que sempre haverá saída para quem fizer o que robôs não fazem, claro que coaches vão vender alguma metodologia infalível aprendida em uma semana, claro que bestsellers vão dizer que o segredo é o f***-se, claro que workshops de fim-de-semana vão te vender SCRUM e Agile e Design Thinking, mas o risco é você se decepcionar com os resultados (se houver algum) e achar que o problema é você. Eu te garanto: não é. Não fomos feitos para a reinvenção permanente, por mais que você cante no banho Metamorfose Ambulante porque curtiu Raul Seixas… aos vinte anos. Mudar assusta, e você não sente medo faz tempo.
Há saída? Eu acredito que sim, e a saída é não ficar sem saída. A natureza humana já vem instalada no hardware de todo bebê mas não é por isso que estamos condenados a viver rodando Windows 95, dá para ligar o auto-update, dá para instalar drivers novos para as novidades que não são plug-and-play, dá para se conectar a mil redes e perceber que há outras maneiras de se pensar, de se viver e de ser feliz. Se algo nos tornou humanos foi justamente a capacidade de ir além dessa nossa herança biológica, foi justamente a capacidade de, como nossos ancestrais fizeram na África, tirar o traseiro da cadeira, botar o chapéu na cabeça e ir descobrir o que tem lá fora. OK, eles não tinham chapéu nem cadeira, eu sei, mas a atitude é o que conta.
Eu tenho visto muita gente descobrir que agora que a gente vive o dobro é possível sim virar o disco para começar o lado B em outra toada. Como descobriram isso? Alguns se enveredaram pelo Caminho de São Tiago, outros compraram uma bicicleta, alguns se tornaram voluntários… os caminhos são vários mas têm algo em comum: descer do salto alto e da SUV, tirar dos ombros o peso morto, se despojar do que não orna mais, sair fora da gaiolinha dourada e esquecer crachás, cargos, hierarquias e panelas. Pasme, mas sem crachá você ainda é uma pessoa.
Quanto mais fizermos isso, quanto antes começarmos, menor a chance de que a gente caia na ilusão de que estamos maduros, de que estamos entendendo tudo e de que somos senhores da situação. Como já dizia um graffiti (que eu li aos vinte anos…), quem acha que está entendendo tudo está mal-informado.
Pensando bem, acho que eu grafitaria algo diferente agora que tenho 55: quem acha que já viu de tudo precisa circular mais. Vá andar e keep walking.
* Um de seus projetos pessoais preferidos são as dicas de leitura no Leia, Vale a Pena: http://leiavaleapena.tumblr.com