Convenhamos: trabalho é chato.
Por isso palestras são legais. Elas distraem. A gente vai lá, tem música empolgante, telas empolgantes, estandes empolgantes, speakers empolgantes, cases empolgantes e a gente sai de lá transbordando empolgação até voltarmos pra firma e nos enroscarmos de novo no cipoal dos perrengues. Quando é a próxima palestra mesmo? Céus.
Palestra boa é aquela que aponta um paraíso reluzente num futuro indefinido e que enche de esperança os fiéis cansados desse mundo de picuinhas e falta de budget, aí sim a gente sai renovado e feliz por ter gasto um dinheirão para ouvir os palestrantes pop stars do mundo dos eventos.
E os lugares, então? CUBOs, Habitats, Google Campus, tudo tinindo, tudo lindo, gente jovem preparada, bem-vestida, chopp grátis, wifi grátis, food trucks… melhor que Disneylândia. Dá até vontade de embarcar num tour pelas maravilhas do Vale do Silício e seus rios de leite e mel e dinheiro infinito.
O Excel desses caras deve ser diferente, a planilha deles não dá problemas quando a conta não fecha ou quando o dinheiro acaba, deve ser uma versão cornucópica de abundância e generosidade que a Microsoft reserva apenas para alguns eleitos, um Celestial Office onde todo o PPT é lindo, todos os contratos já vêm assinados e a matemática é magnânima.
O caminho para esse paraíso deve passar então pelos profetas do futuro, essas figuras tão carismáticas que a gente nem se pergunta o que faziam da vida ou de onde tiram certezas tão definitivas. Mortais como nós têm que ter currículo, experiência concreta, têm que provar por A + B que nossas ideias têm fundamento…
Profetas não precisam de nada disso, são portadores da mensagem divina powered by o dom da palavra empolgante (visuais exóticos ajudam). Racionalidade é para os fracos, os eleitos se embriagam de fé e mergulham de olhos fechados em blue oceans de unicórnios.
Claro, os caras mostram números, sempre mostram, mas os números são tão empolgantes que a gente nem se pergunta de onde vieram, mais ou menos como penetras de festa tão sexys que o segurança deixa entrar sem checar se têm nome na lista. Se fizerem um infográfico bacana, ou um vídeo empolgante então… dane-se o pedigree dos números, vale tudo.
Claro, o Uber pecou, WeWork pecou, a Theranos pecou mas seus CEO’s já caíram dos céus como aquele outro ex-anjo igualmente sedutor e nada disso abala a fé do entusiasta roots, aquele que não se abala com os sinais claros de que o abuso da privacidade, a concentração de poder e renda, a gentrificação das cidades e a precarização do trabalho dos bilhões de não-eleitos estão fazendo do mundo um inferno e que o apocalipse ambiental está próximo.
Isso tudo é um preço baixo a pagar pela ascensão aos céus da meia-dúzia de empreendedores que deram certo enquanto 95% dos outros capotam, tudo isso faz parte dessa roleta reluzente no cassino esfuziante de ideias caça-níquel.
Eu me empolguei, desculpe. Eu me empolguei tanto que voltar pra minha ideia inicial, tão sóbria, tão modesta e tão pé-no-chão fica difícil, o contraste é muito grande e chamar a atenção para a realidade imediata contraria a nossa natureza humana sonhadora.
Como eu faço agora para conversar sobre aquilo que você pode fazer imediatamente, sobre aquilo que está ao seu redor, sobre aquilo que todos nós sentamos em cima? Como trazer você de um sonho made in USA para as mil particularidades dos teus desafios? Como desembaçar seus olhos enevoados de fumaças e vapores de siglas, buzzwords e hype vazio?
Outro dia palestrei para uma turma de estudantes numa escola técnica em Taboão, a ETEC Uirapuru, acho que já contei essa história. Encerrei minha fala plantando uma semente poderosa, pois eu queria que a garotada saísse de lá e mudasse o mundo. O que eu falei? Eu disse que eles, nascidos longe da Vila Olímpia, longe de Palo Alto, tinham nas mãos um tesouro: problemas pra resolver, problemas que eles conheciam de perto, conheciam de dentro, conheciam desde crianças.
Se eles abrissem os olhos para os problemas à sua volta, se eles articulassem seus talentos, sua garra e os corações e mentes de mais rapaziada com fome de mudança, aí sim eles criariam um mundo melhor… à sua imagem e semelhança, amém. #Ficaadica. E não se espante se a disrupção mais espetacular e humana e brasileira vier de onde você menos espera.
* Um de seus projetos pessoais preferidos são as dicas de leitura no Leia, Vale a Pena: http://leiavaleapena.tumblr.com